Transexual desde a infância, Rafaela Crispim foi “expulsa” de escola católica por transição

Transexual desde a infância, Rafaela Crispim foi “expulsa” de escola católica por transição
Foto: José Lucas Salvani

Por volta dos três anos, Rafaela Crispim já não tinha comportamentos considerados de garoto. A mãe não ligava muito. O pai queria um menino. Não demorou muito para que Rafaela se descobrisse e identificasse como uma mulher trans. Anos mais tarde, precisou escolher entre seguir com o seu processo de transição ou continuar frequentando a escola católica onde estudava. Hoje, ela tem 19 anos, estuda direito e ajuda pessoas trans a retificarem seus nomes.

A ida para um psicólogo aos três anos de idade, inicialmente, não era para embarcar em uma jornada de autodescoberta. Os pais se divorciaram e isso impactou a vida de Rafaela a ponto de precisar de auxílio profissional. Foi durante este percurso que, em um primeiro momento, ela se identificou como um homem homossexual.

Ser uma evangelica fervorosa, entretanto, não auxiliou para que o entendimento fosse claro e simples. “Eu lembro que minhas orações eram para reverter isso em mim”, relembra. Aos 12, chegou a desenvolver depressão por não se aceitar graças a igreja que frequentava. Durante um ano não saiu de casa e precisou tomar remédios.

Foi aos 14 anos que ela passou a se perceber como menina e já cogitava passar pela transição. Durante este ano, ela frequentou religiosamente sua psicóloga para se entender e ter a certeza de que era uma pessoa transgênera. Também procurou por outros profissionais junto de sua mãe e, no meio dessas buscas, um psiquiatra chegou a dizer que ela não tinha idade suficiente para discernir e que teria esquizofrenia. O profissional, inclusive, culpou a mãe por incentivar o sonho.

“Na psicologia, a gente não trata a questão da transsexualidade como doença. Não é uma doença, não é um psicopatologia. É uma expressão de identidade, uma expressão de gênero. A gente ajuda o paciente a se conhecer melhor, entender quem essa pessoa é e achar os caminhos para que ela consiga ser essa pessoa. Tem o autoconhecimento e também a autoestima, a pessoa saber quem ela é e se orgulhar”, explica Felipe Epaminondas, de 34 anos, que é psicólogo da Rafaela em Cuiabá.

A transição não impactou tão somente Rafaela, como também a família. Sua mãe antes mesmo de levar a filha para um psicólogo consultou com um profissional sozinha. Felipe explica que é importante que os pais vão ao consultório para esclarecer todas as dúvidas possíveis, orientar a melhor forma de lidar com a criança ou adolescente trans e deixar claro que não é somente uma fase, é para toda vida. “[Agora], quantos pais estão dispostos e abertos a ouvir o que o profissional tem a dizer?”, questiona.


Quando a transição começou, ela precisou sair da escola católica onde estudava. Foi imposta uma escolha entre não transicionar e continuar na escola, e perder sua bolsa de estudos caso transicionasse. Ela optou sair e retornou para uma escola que já havia estudado. Nesta unidade de ensino, as idas a diretoria eram frequentes. Em resposta ao bullying banhando em apelidos e pessoas falando mal, ela revidava e brigava muito. “Tudo virava motivo de piadinha”, resume.


Dois anos após se identificar como uma mulher, Rafaela se emancipou da mãe para poder começar um tratamento que só poderia fazer caso fosse maior de idade. Sozinha porque a mãe não poderia deixar a casa onde moravam, ela passou alguns meses em Curitiba. A volta para Mato Grosso aconteceu quando tentou fazer a retificação do seu nome e não conseguiu, o que a abalou muito, mas também motivou a seguir como paralegal em Cuiabá anos depois.

“Eu lembro que a maior parte do meu sofrimento foi não poder mudar o meu nome. Isso foi devastador para mim, tanto que vim embora por causa disso. Isso doeu tanto. Por isso que eu luto tanto pela questão das retificações das pessoas aqui em Cuiabá. Eu fico muito chateada quando chega em alguma situação, estou lá retificando e tem um impedimento. Isso me remete quando eu tive o impedimento”, desabafa.

 

O pai que não aceitava a filha, muito menos quando transicionou, e culpava a mãe por Rafaela passar muito tempo com suas tias, o que teria, para ele, a influenciado, passou a aceitá-la como mulher trans um ano depois. Ela brinca que até os pronomes certos ele usa. Entretanto, a relação dos dois ainda é estremecida porque ficaram afastados por muito tempo. “Eu perdi essa referência de pai e ele essa referência de filha”, explica.

Parada da Diversidade 2019

Na edição deste ano, a Parada da Diversidade Sexual de Cuiabá 2019 será realizada no dia 16 de novembro e terá uma feira para trabalhadores LGBTI+. O evento terá como tema “Somos muitos, mas podemos estar em qualquer profissão” e visa trazer debates sobre a inserção da comunidade no mercado de trabalho e desmistificar alguns estereótipos profissionais. A expectativa é de 25 mil pessoas nesta edição.

Entre os debates acerca do mercado de trabalho, um deles será sobre a Previdência Social. O presidente do conselho explica que muitos não conseguem se aposentar por diversos fatores, como não conseguir uma carteira de trabalho assinada. O atual governo, de acordo com ele, também não contribui porque está desfazendo tudo o que foi conquistado pela comunidade nos governos anteriores.


“O que nós buscamos nessa parada? Nós buscamos o espaço no mercado de trabalho como qualquer cidadão. Aos olhos de Deus nós somos iguais a todo mundo. Buscamos esse lugar e buscamos também a Previdência Social. Queremos aposentar. Eu conheço LGBTs idosos que não conseguiram se aposentar”, aponta Valdomiro Arruda, presidente do Conselho Municipal de Atenção à Diversidade Sexual (CMAS).

Da Redação - José Lucas Salvani